Quando se fala de Papas, a tendência é para pensar em Itália, em Roma, nas grandes figuras que moldaram a história da Igreja Católica a partir do centro do poder espiritual cristão. Poucos imaginam que o território português — ou, mais exatamente, o que viria a ser Portugal — viu nascer dois homens que chegaram ao trono de São Pedro.
Um é indiscutivelmente português. O outro viveu séculos antes da fundação do país, mas o seu berço encontra-se hoje dentro das nossas fronteiras. Vamos conhecê-los?
João XXI: o único Papa português (e uma morte insólita)

A 20 de setembro de 1276, Pedro Julião foi coroado Papa com o nome de João XXI. Natural de Lisboa, ficou para a história como o único português a ocupar o mais alto cargo da Igreja Católica. Mas não chegou lá por ter sangue nobre ou influência familiar — chegou lá pelo saber.
Também conhecido por Pedro Hispano, destacou-se como médico, filósofo e professor universitário. Estudou em Lisboa, Paris e ensinou em Siena. Escreveu tratados de lógica e de medicina que circularam durante séculos pelas universidades da Europa. Diz-se que até Dante Alighieri, na Divina Comédia, o colocou no Paraíso, entre os grandes sábios cristãos.
A eleição de João XXI foi surpreendente numa Igreja dominada por italianos e franceses. Mas o seu prestígio como intelectual, aliado à experiência como arcebispo de Braga e médico pessoal do Papa Gregório X, abriram-lhe caminho até ao conclave.
O seu papado, no entanto, foi curto e terminou de forma trágica. João XXI mandou construir um anexo no palácio papal de Viterbo, onde pudesse trabalhar com mais sossego. Mas a estrutura ruiu, e o Papa ficou soterrado nos escombros. Morreu dias depois, em maio de 1277. A morte foi vista por alguns como um castigo divino — um castigo pela sua alegada vaidade intelectual.
Mesmo com um pontificado breve, João XXI tentou intervir em questões importantes do seu tempo: procurou reforçar o poder da Santa Sé, mediar conflitos políticos e promover a reconciliação com a Igreja Ortodoxa. Mas era claro que o coração de Pedro Hispano estava mais nos livros do que nos corredores do poder.
Dâmaso I: nasceu na Egitânia, antes de existir Portugal

O outro nome com ligação a Portugal leva-nos bem mais longe no tempo, ao século IV. Dâmaso I nasceu por volta do ano 305, possivelmente em Idanha-a-Velha — então chamada Egitânia — numa altura em que o território ainda fazia parte do Império Romano. Oficialmente, Portugal ainda não existia, mas isso não impede que se estabeleça uma ligação simbólica com a figura deste Papa.
Dâmaso I foi eleito em 366, num período turbulento para a Igreja, marcado por disputas internas e ameaças externas. A sua ascensão foi tudo menos pacífica: enfrentou a oposição de um antipapa, Ursino, e os confrontos entre facções causaram mais de uma centena de mortos em Roma. Ainda assim, Dâmaso impôs-se como um líder firme e respeitado.
Durante o seu longo pontificado — 18 anos — promoveu a ortodoxia, combateu heresias como o arianismo e fortaleceu a autoridade papal. Encomendou a revisão dos textos da Bíblia ao seu secretário, São Jerónimo, resultando na famosa Vulgata, a versão oficial em latim que viria a moldar a doutrina católica durante séculos.
Dâmaso era também um homem culto e sensível à arte. Foi poeta, restaurou as catacumbas e homenageou os mártires cristãos com epigramas gravados na pedra. Recuperou tradições litúrgicas, instituiu o canto do Aleluia fora da Páscoa e definiu os horários das orações nas igrejas e mosteiros. Faleceu em 384 e foi sepultado num túmulo discreto, que ele próprio mandou preparar.
Pedro Julião e Dâmaso I viveram em épocas diferentes e em contextos muito distintos. Um nasceu num país já formado, o outro num império vasto e ainda pagão. Mas ambos marcaram a história da Igreja e estão ligados, de uma forma ou de outra, à terra a que hoje chamamos Portugal.
Se João XXI é um nome que todos deviam conhecer como parte do nosso património histórico e cultural, Dâmaso I representa uma curiosidade fascinante — uma espécie de antepassado espiritual com raízes na mesma geografia. São dois Papas que nos recordam como, mesmo num palco global como o da Igreja Católica, há sempre espaço para histórias com sabor local.
Também muito interessante é a história do Antipapa Gregório VIII que se pensa que, no século XII, levou as relíquias de São Marcos de Veneza para Braga onde tinha sido arcebispo. Supostamente, estas relíquias encontram-se numa urna na Igreja de São Marcos em Braga.