As filhoses são, para muitas famílias portuguesas, o verdadeiro coração do Natal. Mais do que um doce, são um ritual: a massa sovada à mão, o repouso junto ao calor, o cheiro da aguardente e da laranja a espalhar-se pela casa. Ao contrário dos sonhos ou das rabanadas, a filhós exige tempo, força e atenção — e é precisamente isso que lhe dá carácter.
Conseguir aquela textura perfeita, elástica, cheia de bolhas de ar e capaz de se manter boa durante vários dias, não depende tanto da lista de ingredientes, mas sobretudo de como se trabalha o fermento e da forma como a massa é batida.
Fazer filhoses tradicionais é um processo artesanal, onde nada deve ser apressado. Estes são os princípios que as avós seguiam quase por instinto — e que continuam a ser decisivos.
O “isco”: acordar o fermento
O fermento nunca deve ser misturado diretamente na farinha seca.
O método tradicional começa com um isco: o fermento de padeiro é dissolvido em água morna, com um pouco de farinha e uma pitada de açúcar.
Esta mistura deve repousar cerca de 20 minutos, até começar a borbulhar e a crescer. Só depois é incorporada na massa principal. Este passo garante que o fermento está ativo e dá à massa uma fermentação mais segura e uniforme.
Sovar até a massa “estalar”
Aqui não há atalhos. A massa das filhoses tem de ser batida com vigor.
À medida que se sova, a massa ganha elasticidade e começa a desprender-se das mãos e da bacia. O sinal certo é quando surgem pequenos estalidos — bolhas de ar que rebentam com o movimento. É isso que indica que o glúten está bem desenvolvido e que a massa está pronta para crescer sem perder estrutura.
O repouso em ambiente morno
O frio é inimigo da filhós. Depois de bem sovada, a massa deve ficar tapada com um pano grosso e repousar num local morno e protegido de correntes de ar.
Tradicionalmente, colocava-se perto da lareira ou do forno ligeiramente aquecido e desligado. O objetivo é simples: permitir que a massa duplique ou até triplique de volume, mantendo-se viva e leve.
Azeite e aguardente: mais do que sabor
Estes dois ingredientes têm funções técnicas claras.
O azeite, adicionado morno, confere elasticidade à massa e permite esticá-la com os dedos sem rasgar. A aguardente, por sua vez, ajuda a evitar que a filhós absorva demasiado óleo durante a fritura, além de contribuir para o aroma característico.
Esticar à mão, nunca com rolo
As filhoses tradicionais não se estendem com rolo.
Com as mãos untadas em azeite, retira-se uma porção de massa e estica-se do centro para fora, mantendo as bordas mais grossas. O centro deve ficar muito fino, quase translúcido. Esta diferença de espessura é o que cria o contraste entre a borda fofa e o interior mais estaladiço depois de frito.
Dica tradicional
Em muitas regiões, as filhoses não são apenas passadas por açúcar e canela. Uma calda leve de açúcar ou mel, fervida com casca de laranja e pau de canela, ajuda a mantê-las húmidas durante mais tempo e intensifica o aroma.
Em síntese: um bom isco, uma massa bem sovada até “estalar” e um repouso quente e paciente são os pilares das filhoses como as de antigamente — daquelas que sabem a Natal e a memória.







