Passados mais de novecentos anos sobre o nascimento de D. Afonso Henriques [1109-1185], a vida do primeiro rei de Portugal continua cheia de mistérios por desvendar e mitos por esclarecer. De uma coisa, ao menos, não há dúvida: cresceu em Guimarães, foi aí que tomou as rédeas do poder que conduziu à fundação da nacionalidade e foi daí que partiu, com os cavaleiros minhotos, para alargar as fronteiras do Condado Portucalense – território que haveria de formar o núcleo de Portugal independente.
Mesmo às portas de Guimarães ocorreu o que está na origem de um dos mitos mais arreigados da História de Portugal: a batalha de São Mamede, a 24 de Junho de 1128. O mito foi o filho ter batido na mãe, o que nunca aconteceu mas que por alguma razão foi contado/inventado pelos monges crúzios autores da IV Crónica Breve de Santa Cruz de Coimbra.

Apoiado pelos nobres de Entre Douro e Minho, o jovem guerreiro afirmou a sua autoridade em sucessivas vitórias sobre leoneses e muçulmanos, mas logo de início sobre os apoiantes de sua mãe. Viúva do conde D. Henrique de Borgonha, D. Teresa teve um papel político activo raro naquele tempo – e mal-visto, sobretudo pelos clérigos.
Além de defender os seus domínios, atacados pelas ofensivas dos mouros, D. Teresa contestou a sucessão da irmã Urraca (Afonso VI morreu em 1109, por altura do nascimento do seu neto D. Afonso Henriques, deixando como rainha a filha legítima) e opôs-se de armas na mão ao arcebispo Diego Gelmírez, apostado em impor o primado da diocese galega de Santiago de Compostela à portucalense de Braga.
Nessa luta D. Teresa teve como aliada uma facção da nobreza da Galiza que se opunha a Gelmírez, encabeçada pelo conde Pedro Froilaz de Trava. A condessa portucalense tornou-se amante dos dois filhos do nobre galego: primeiro de Bermudo Pérez de Trava e depois de Fernão Pérez de Trava, com quem viveu e de quem teve duas filhas.
Em 1121, Bermudo casou-se com uma filha de D. Teresa, Urraca Henriques, irmã de D. Afonso Henriques. O relacionamento posterior da rainha (título usado por D. Teresa, por ser filha de rei) com Fernão Pérez de Trava, casado com uma dama galega, suscitou a condenação do clero – mas há relatos que mostram que terá sido aceite pela sociedade portucalense: um documento de finais do século xii usa as expressões coniux e viro meo (cônjuge e meu homem) para falar do matrimónio entre D. Teresa e Fernão Pérez.

Depois de ter enfrentado e vencido as tropas de sua mãe, D. Teresa, na Batalha de São Mamede, D. Afonso Henriques terá colocado a progenitora e o seu amante, Fernão Peres de Trava, na prisão. Como se isso não fosse castigo suficiente, diz a lenda que o jovem governante terá mesmo batido na própria mãe, terminando assim com uma contenda que começou com a morte do pai, o conde D. Henrique, em 1112.
Furiosa com o filho, D. Teresa decidiu lançar-lhe uma maldição. De acordo com a IV Crónica Breve de Santa Cruz de Coimbra, a governante deposta terá pedido a Deus que o filho fosse preso tal como ela e que as suas pernas fossem partidas por “ferros”. Como qualquer boa praga, esta veio a concretizar-se trinta anos depois, quando D. Afonso Henriques, já rei de Portugal, tentou conquistar Badajoz.

Obrigado a ordenar a retirada das suas tropas, D. Afonso Henriques acabou por partir uma perna contra o ferrolho de um portão. Preso por D. Fernando II, rei de Leão, só foi libertado depois de renunciar às terras a norte do rio Minho e à Galiza. O pior de tudo foi a sua perna que, a partir daquele dia, nunca mais ficou boa. Tudo por culta da praga rogada por D. Teresa.
Mas será que aconteceu exactamente assim?
Apesar de a lenda ser bem conhecida, os documentos da época contam outra história. Dizem estes que, depois da Batalha de São Mamede (ocorrida a 24 de Junho de 1128), os derrotados não foram presos nem tão pouco alvo de qualquer violência. D. Teresa e Fernão Peres limitaram-se a abandonar o território portucalense, recolhendo-se na região de Limia, na Galiza, na companhia das suas duas filhas, Sancha e Teresa Fernandes. Foi aí que a mãe de D. Afonso Henriques acabou por morrer, a 1 de Novembro de 1130.
Quanto à perna, é verdade que D. Afonso Henriques a partiu. Contudo, o episódio do cerco a Badajoz, na altura a praça mais importante da zona ocidental da Península Ibérica, foi, reinventado anos mais tarde nas paredes do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra com um único objectivo: o de “enaltecer a imagem grandiosa de D. Afonso, primeiro rei dos Portugueses, e rendilhar o que fora um acidente, num ato vingativo da mãe, conferindo assim uma maior carga sobrenatural ao fundador do reino”.
Afinal D Afonso Henriques deu um par de estalos ao galego namorado da mãe que era aliado de Castela/Leão.