No restaurante imundo no centro de Lisboa, um grupo de homens dá nas vistas: falam alto, gritam obscenidades aos empregados e clientes, comem peixes fritos com as mãos e entornam jarros de vinho. Quando saem, dirigem-se a um bordel e só voltam a ser vistos de manhã, ainda mais bêbedos do que antes. A festa continua: a caminho do Paço Real, param para apedrejar janelas, assediar senhoras, meter-se com vagabundos e pontapear os que dormem na rua.
Uma das vítimas não aceita o desaforo e lança-se ao rebelde com aspecto mais frágil: um jovem coxo, de olhos claros – era o rei D. Afonso VI. O vagabundo dá-lhe murros e pontapés enquanto os outros assistem a rir-se. O rapaz já a deitar sangue, só encontra uma forma de se libertar: grita que é o Rei de Portugal.

D. Afonso VI tinha fama de ser um desordeiro. Apesar da paralisia parcial do lado direito do corpo, do excesso de peso e da bulimia, gostava de sair à noite com um grupo de amigos de reputação duvidosa. Muitas vezes acabavam na esquadra, mas nunca sofriam represálias.
Um dos seus companheiros era o comerciante genovês de cintos, meias e adornos femininos, António Conti, que rapidamente passou a frequentar o Paço, com acesso directo ao quarto real. Levava prostitutas e rapazes e embebedava-se, mas conseguiu uma comenda, um título de fidalguia e o hábito da Ordem de Cristo.

Farta do comportamento inadequado do filho e do amigo, D. Luísa de Gusmão mandou deportar Conti para o Brasil. O rei passou a levar um estilo de vida mais discreto, mas nunca deixou de receber rapazes. De acordo com o livro “Reis que Amaram como Mulheres”, coleccionou amantes do sexo masculino.
A conspiração contra o Rei
Entre 9 de Janeiro e 23 de Fevereiro de 1668, nas tardes de segundas, quartas e sábados, 55 testemunhas foram chamadas ao paço do arcebispo de Lisboa para depor, em audiências públicas, sobre a incapacidade sexual do Rei D. Afonso VI.
Em causa estava o pedido de anulação do casamento feito pela rainha, a francesa D. Maria Francisca de Sabóia, que, apenas dois dias depois de ter conhecido o noivo, desabafou com o jesuíta Francisco de Vila: “Meu padre, parece-me que não terá Portugal sucessores deste Rei.”

Nos meses seguintes, na confissão, continuou a queixar-se ao sacerdote de que o Rei era “inábil e impotente”. Acabou por se refugiar no Convento da Esperança, pediu a nulidade da cerimónia e designou o duque de Cadaval para ser seu procurador no processo, deixando-lhe esta carta: “Apartei-me da companhia de Sua Majestade, que Deus guarde, por não haver tido efeito o matrimónio em que nos concertámos (…).”

O caso foi julgado por três autoridades eclesiásticas e um júri com quatro desembargadores e quatro cónegos. Entre as primeiras testemunhas, sobressaíram 14 mulheres com quem Afonso VI tinha tentado envolver-se.
Com a mão direita em cima dos evangelhos, prometeram dizer a verdade e não pouparam nos pormenores, segundo um manuscrito da Torre do Tombo publicado em 1925 por António Baião, intitulado Causa de nulidade de matrimónio entre a rainha D. Maria Francisca Isabel de Saboya e o Rei D. Afonso VI.
Os depoimentos das 14 parceiras
Estas 14 “parceiras” tinham entre 15 e 30 anos (embora na identificação surgisse sempre, a seguir à idade, a referência “pouco mais ou menos”) e quase todas foram abordadas por criados do Rei que as levaram ao paço, mais do que uma vez, para se deitarem “na cama com Sua Majestade”, segundo a expressão usada, por exemplo, por Jacinta Monteiro, que esteve três dias despida para nada: “Ora se lhe abaixava o membro viril ora derramava semente extravas, sem que nunca nas três noites e três dias o pudesse fazer intravas”, descreveu Jacinta, que na altura “estava donzela” (depois de perderem a virgindade passavam a designar-se “mulheres corruptas”). Jacinta contou que viria a ser “desflorada” por um amigo duas semanas mais tarde, o que a levou a concluir que o Rei “não prestava nem tinha actividade para penetrar mulheres donzelas”.
Com Joana Tomázia sucedeu o mesmo. O Monarca justificou-se, alegou que estava muito “gastado de mulheres”, mas a testemunha achou o “membro viril” muito diferente do de outro homem que conhecera, “porquanto o de Sua Majestade, quando derramou semente, ficou como o de uma criança, e muito desigual quando estava erecto, por ser muito mais delgado na raiz do que na extremidade”.
Catarina Henriques esteve 12 vezes com o soberano ao longo de três anos e, apesar de ter recebido 12 mil réis por mês da casa real, também denunciou a incapacidade de D. Afonso VI “e reparou ainda nos grãos, pela desigualdade que havia entre ambos, por ser um maior e outro muito mais pequeno”.
Já Teresa de Jesus partilhou a sua surpresa com a abundância e a cor amarela da semente que lhe encharcou as meias e os sapatos com que estava debaixo dos lençóis. E Jerónima Pereira espantou-se com o cheiro da semente, que era diferente do da semente do marido.
Nas mesmas audiências públicas, Lourença Maria revelou que o Rei tinha sido despido pelo conde de Castelo Melhor. Joana de Saldanha contou que o Chefe de Estado respirava com cansaço e lhe dizia “já não posso, já não posso” e outras vezes “já sou velho, já sou velho”(tinha 24 anos).
A Joana de Almeida, o Monarca pediu desculpa pela “fraqueza e pouca actividade”. E disse: “É grande trabalho ser um homem aleijado!”
Os médicos do Rei atribuíram esta sua “frouxidão” a um acidente que sofreu aos 3 anos e que quase lhe paralisou o lado direito do corpo. O problema persistiu apesar de vários remédios e tratamentos. Mas Ângela Barreto Xavier e Pedro Cardim, autores da biografia D. Afonso VI, sustentam que “muitas das testemunhas terão sido instruídas para apresentarem determinadas versões ou omitirem certos detalhes”.
Um fidalgo que viu o Rei nu uma vez descreveu que este tinha o membro como se saísse de se banhar em água fria. E um moço do guarda-roupa confidenciou que o Chefe de Estado pediu aos criados que lhe fizessem uma vistoria para verem se tinha potência.
Percebe-se porque é que Rui Ramos, coordenador do livro História de Portugal, considera que este é “o maior escândalo de sempre”. Não apareceu ninguém nas audiências para defender D. Afonso, que foi deposto por decisão do Conselho de Estado e viveu o resto dos seus 14 anos de vida aprisionado.
D. Maria Francisca de Sabóia conseguiu anular o matrimónio e logo a seguir casou com o cunhado, D. Pedro II, que foi coroado Rei depois de ter estado ligado a todos os conluios que levaram ao afastamento do irmão. Nove meses mais tarde, em Janeiro de 1669, nascia finalmente uma princesa, a Infanta Isabel.
Quando as pessoas podem fazer coisas fora do habitual pode-se gostar.